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Esclerose Lateral Amiotrófica, mudança de paradigma científico

A terapêutica do ácido nucleico como nova modalidade de descoberta de drogas para doenças sem tratamento, especificamente a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). é mote do estudo Promise of Nucleic Acid Therapeutics for Amvotrophic Lateral Sclerosis-pubmed.nebi.nlm.nih.gov/34704267/. Para debatê-lo, o ABNews ouviu o professor Paulo Victor Sgobbi de Souza, neurologista com pós-graduação em neurociências pela Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo, membro do Departamento Científico de Doenças Neurônio Motor / Esclerose Lateral Amiotrófica da ABN.

A ELA familiar é responsável por um pequeno percentual de casos<10-15%) e é causada por variantes com padrão de herança dominante em mais de dez genes. Quais os desafios para que estas terapias cheguem ao mercado?

A Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) é uma doença neurodegenerativa muito heterogênea, decorrente das múltiplas causas genéticas (mais de 50 genes iá implicados no desenvolvimento da doença), com comprometimento de diversos processos celulares relacionados ao funcionamento e sobrevida neuronal. O estudo de uma terapia genética em ELA é extremamente complexo e desafiador, tendo em vista que a ELA é uma doença ultrarara, com incidência de 1-2 casos para 100.000 habitantes, e as formas familiares com base monogênica conhecida representam menos de 10% desse pequeno montante Sendo assim o advento de uma terapia genética, destinado a um defeito genético em específico, sempre vai esbarrar no problema do tamanho, sendo muito difícil a realização de estudos com grande número de pacientes devido à sua natureza rara. Isso dificulta a observação de dados de eficácia e segurança em grande número de pacientes e por tempo prolongado, já que a história natural da doença é rápida, frequentemente resultando em estudos com baixo poder estatístico ou com benefícios marginais; a questão amostral também dificulta o desenvolvimento de novos estudos clínicos, tendo em vista que o estudo dessas terapias genéticas leva anos e consome muitos recursos financeiros (em faixa de milhões/bilhões de dólares). No final, a maioria desses estudos acabam apresentando uma grande desvantagem de recursos econômicos e científicos, considerando que o investimento é extremamente alto e a população que poderá ter um real benefício é extremamente pequena.

Para que essas terapias genéticas definitivamente cheguem ao mercado é necessária uma mudança de paradigma científico com a realização de estudos clínicos que abriguem essa limitação amostral (fugindo dos modelos mais tradicionais de desenvolvimento de drogas) e com desfechos clínicos mais realistas. Pois, no caso, sabemos que a cura ou melhora dos sintomas da doença não é uma perspectiva realista na ELA e o que desejamos é o aparecimento de uma terapia que diminua ou bloqueie a progressão da doença. Mas esquecemos de colocar esse desejo como desfecho desses estudos clínicos e impomos desfechos utópicos que nunca são atingidos, mantendo sempre a sensação de que nossas descobertas falharam. Também é importante uma mudança econômica com maior estímulo a estudos para essas doenças ultrarraras, permitindo que mais moléculas sejam desenvolvidas e um número maior de pesquisas possa ser realizado.

Essas terapias seriam apenas para um pequeno subgrupo de pacientes com ELA. Em relação às formas esporádicas, quais as perspectivas? Os estudos de proteomas e metabolomas poderiam auxiliar no desenvolvimento de novas terapias?

As perspectivas para a ELA esporádica são ainda mais desafiadoras e ainda um pouco distantes do cenário clínico. A complexidade da ELA esporádica, na qual vários defeitos genéticos e alterações em múltiplas vias celulares concorrem para a degeneração dos neurônios motores, é o que acaba dificultando o surgimento de uma terapia que consiga corrigir tantas alterações e defeitos. Os estudos moleculares de proteomas e metabolomas, assim como outras linhas como aqueles relacionados “imunologia” da doença, nos permitem aumentar o conhecimento a respeito dos processos que levam a degeneração e morte neuronal, que é etapa fundamental para o desenvolvimento de terapias de tratamento das doenças degenerativas. O grande problema é: são múltiplos os mecanismos de disfunção e morte neuronal e modificar apenas uma via alterada não se traduz numa melhora da doença neuronal, pois o processo de morte e perda de neurônios é perpetuado por outras vias moleculares e celulares. Além disso, frequentemente quando se altera ou uma bloqueia uma via molecular, outros processos celulares são alterados, inclusive aqueles que já ocasionam morte neuronal ou a perda de uma função celular essencial, que em última instância vai gerar um novo mecanismo de perda.

O “knockdown” direcionado de TDP 43 e FUS pode ser problemático. Ambos os genes possuem importantes funções biológicas. Segundo alguns estudos, alterar a expressão destes mRNAs poderia levar a um caminho incerto, pois a perda de função endógena pode ser tão tóxica quanto o ganho de função relacionado à doença. Como interferir nessas vias de forma mais precisa? Outros genes moduladores poderiam ser alvos?

Este é o maior desafio das terapias moleculares e genéticas em Esclerose Lateral Amiotrófica. As proteínas envolvidas na fisiopatologia da doença são responsáveis por múltiplas funções celulares e não existe um mecanismo único pelo qual produzem a morte neuronal (nem tudo na ELA se resume a um ganho tóxico de função), de forma que alterar essas vias moleculares sem uma perda fisiológica importante e quase impossível. Acredito que na ELA os grandes desafios são todos um problema de “tempo”. Já é um fato bem conhecido que quando um paciente começa a apresentar sinais ou sintomas clínicos da ELA, mais de 50% das unidades motoras já morreram e que todos os mecanismos de morte neuronal estão ativados e dificilmente podem ser silenciados. Esse conhecimento nos levou a pensar cada vez mais nas fases precoces e pré-sintomáticas da doença, onde existe apenas um ou poucos defeitos genéticos que alteram a fisiologia neuronal e aumentam o potencial de morte neuronal, mas clinicamente o paciente não apresenta sintomas e do ponto de vista celular poucas vias ainda estão comprometidas. É nesse momento que talvez nossas terapias genéticas sejam mais assertivas e eficazes. Há uma necessidade urgente de atuarmos cada vez mais precocemente, em momentos no qual sabemos que apenas um mecanismo está ocorrendo e onde exista apenas uma ou poucas relações de causa-efeito.

A atuação nessas vias de forma mais precisa, seja nos genes principais ou nos genes moduladores, só é possível em estágios muito precoces da doença. Em estágios avançados, não há apenas um fator regulador, mas sim vários, e os mecanismos de escapar desses fatores controladores já estão em sua maioria superados. O tempo quanto à ELA é um problema constante!

No Brasil, levando-se em consideração os aspectos econômicos e financeiros, qual o impacto da chegada destas novas terapias? Que importância os estudos de prevalência de formas hereditárias de ELA têm neste contexto?

Acredito que os problemas econômicos e financeiros não sejam exclusivos do Brasil, mas ocorrem no mundo todo, em maior ou menor proporção. Já está bem-estabelecido os motivos pelos quais as terapias genéticas são caras (inclusive tivemos a oportunidade de apresentar alguns no início da matéria). Como médico, tenho um flagrante conflito de interesse com a vida e o bem-estar do meu paciente e, a partir do momento que julgo ou aponto uma terapia como “cara” ou “impagável”, acabo colocando valor em algo que é inestimável (a vida do outro). Como médico que lida diretamente com pacientes e familiares que lutam contra a ELA, e como cientista que tem se esforçado para permitir que avanços científicos como a terapia genética possam mudar a vida de pacientes e familiares, eu prefiro me distanciar ou me abster da discussão sobre os impactos financeiros; não estou dizendo que os aspectos econômicos não são importantes (pois eles são), apenas acredito que devem ser debatidos e discutidos por um grupo maior de agentes sociais e que a totalidade do impacto da ELA seja levada em conta, já que quanto mais distante você estiver do problema maior sua compreensão a respeito da questão.

A importância dos estudos de prevalência de formas hereditárias de ELA vai muito além do contexto financeiro-econômico, precisamos desses estudos por um bom motivo: conhecer bem um problema é o primeiro passo para resolvê-lo. Sendo assim, os estudos de prevalência das formas hereditárias de ELA são o que nos permite saber qual a dimensão de um determinado subtipo para a nossa população, impulsiona a realização de pesquisas a respeito dos mecanismos fisiopatológicos pelos quais esses genes se expressam e ocasionam doença, permite pensar em novas estratégias para um diagnóstico precoce ou mais assertivo e possibilita a realização de ensaios clínicos com drogas. No conjunto, só agrega ao nosso conhecimento a respeito da doença e nos aproxima de um futuro melhor.

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